[Juliana entregara a Luísa uma carta que Basílio enviara do hotel.]
Desde pela manhã a Joana achava-lhe o "ar esquisito". Sentira-a desde as sete horas varrer, espanejar, sacudir, lavar as vidraças da sala de jantar, arrumar as louças no aparador. E com uma azáfama! Ouvira-a cantar a Carta adorada, ao mesmo tempo que os canários, nas varandas abertas, chilreavam estridentemente ao sol. Quando veio tomar o seu café à cozinha não palestrou como de costume; parecia preocupada e ausente.
Joana até lhe perguntou:
- Sente-se pior, srª Juliana?
-Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.
- Como a vejo tão calada ...
- A malucar cá por dentro ... A gente nem sempre está para grulhar.
Apesar de serem nove horas, não quisera acordar a senhora. - Deixá-la descansar, coitada - disse. (172)
Contexto interno
Contexto interno
Juliana é a criada doente, azeda e feia. Devido a uma infância e um quotidiano difíceis, ganhou ódio a qualquer patroa e o seu sonho é conseguir algum dinheiro para se estabelecer e trabalhar para si.
Na manhã seguinte ao adultério, Juliana, cheia de suspeitas, vem entregar a Luísa, em jeito de cúmplice, uma carta de Basílio, ponderando se poderá vir a retirar proveito da situação.
Joana é a cozinheira, saudável e forte, muito dedicada a Luísa.
Contexto referencial
Contexto referencial
A "Carta Adorada" é uma passagem da ópera "A Grã Duquesa de Gérolstein", divertida sátira anti-militarista, que denuncia o absurdo da guerra, escrita por Jacques Offenbach (1819-1880). A "Carta adorada" é a carta que cada uma das amadas recebe do seu querido que está a cumprir o serviço militar, desejoso de que a separação termine para poderem ser felizes. Offenbach, muito admirado por Eça, criticou vivamente a sociedade do seu tempo e foi muito popular. Compôs óperas cómicas célebres como "A Bela Helena", "A Vida Parisiense", "Os contos de Hoffmann".
Eça de Queirós valoriza as óperas de Offenbach, muito popular, em perfeita oposição à ópera romântica, ao gosto da aristocracia e da burguesia portuguesas, representada no São Carlos (Carvalho, 1986). O autor gosta mesmo de colocar árias na boca de algumas personagens.
Perspectivas
Indícios/símbolos
Indícios/símbolos
O facto de Juliana estar a cantar uma passagem da ópera de Offenbach, que denuncia o sofrimento e a esperança de que brevemente termine a guerra, para os soldados refazerem as suas vidas com as amadas, indicia que a esperança renasce em Juliana pressentindo ela que a sua sorte vai mudar dentro em pouco.
Aparência/Realidade
Aparência/Realidade
Juliana estava com uma energia não habitual, que lhe vinha da sua intuição de que a sua sorte iria mudar e, por outro lado, demasiado calada, a tentar engendrar um plano que a favorecesse. O seu dinamismo e silêncio exteriores reflectem a sua agitação interior, o seu “malucar”.
Intertextualidade
Intertextualidade
O narrador tira partido da "Carta Adorada", para indiciar a esperança de Juliana em alcançar, a curto prazo, uma vida melhor.
Ironia
Ironia
A ironia resulta do contraste entre as razões pelas quais a carta é qualificada de adorada na ópera e é adorada para Luísa - trata-se de razões da ordem da paixão - e a razão pela qual pode vir a ser adorada para Juliana - trata-se de razões da ordem do possível proveito pessoal, caso ela venha a "apanhar" algum segredo da patroa.
Extracto de video - Juliana a cantar a "Carta adorada".