[Juliana] - Diverte-te, piorrinha, diverte-te, que o meu dia há-de chegar! Oh se há-de!
Luísa com efeito divertia-se. Saía todos os dias às duas horas. Na rua já se dizia que “a do Engenheiro tinha agora o seu S. Miguel”.
Apenas ela dobrava a esquina, o conciliábulo juntava-se logo a cochichar. Tinham a certeza que se ia encontrar com o “peralta”. Onde seria - era a grande curiosidade da carvoeira.
- No hotel - murmurava o Paula. -Que nos hotéis é escândalo bravio. Ou talvez - acrescentava com tédio - nalguma dessas pocilgas da Baixa!
A estanqueira lamentava-a: uma senhora que era tão apropositada!
- Vaca solta lambe-se toda, srª Helena - rosnava o Paula.
- São todas o mesmo!
- Menos isso! - protestava a estanqueira - Que eu sempre fui mulher honesta!
- E ela? - reclamava a carvoeira - Ninguém tinha que lhe dizer!
- Falo da alta sociedade, das fidalgas, das que arrastam sedas! É uma cambada. Eu é que o sei! - E acescentava gravemente: - No povo há mais moralidade. O povo é outra raça! (191-192)
Contexto interno
Contexto interno
Juliana mostrava-se muito delicada com Luísa, desempenhando as suas tarefas com afinco. Odiava Luísa - designando-a por cabra, piorrinha -, mas camuflava os seus sentimentos para poder vir a vingar-se.
Contexto referencial
Contexto referencial
O S. Miguel: metáfora popular, construída sobre a festa litúrgica de S. Miguel em 29 de Setembro, abarca as colheitas e os lucros obtidos pelos camponeses nos meses de Setembro e Outubro e corresponde a um período de desafogo económico e bem-estar.
Perspectivas
Indícios/símbolos
Indícios/símbolos
Juliana revela, em pensamentos, o seu ressentimento e desejo de vingança o que indicia a chantagem a que irá submeter a patroa.
Decadência
Decadência
A rua onde Luísa morava dá fé de tudo e sobre um pequeno indício conjura uma montanha de suposições (Pimpão, 1952). Os habitantes, cientes dos costumes libertinos da burguesia, sabendo da situção de Luísa, sozinha e sem marido, logo conjuram sobre o seu crime moral.
O Paula generaliza o problema do adultério às damas da alta sociedade, fazendo-se uma espécie de porta-voz do povo humilde e supostamente honesto em matéria de moral - "é outra raça!".
Aparência/realidade
Aparência/realidade
Luísa tida por "apropositada" passa, apenas por razões supostas, a "vaca solta lambe-se toda", nas expressões populares da vizinhança. Mas, neste caso, a aparência confunde-se com a realidade.
Ordem/desordem
Ordem/desordem
A rua, ávida de novidades e mexericos, dominada pelo “voyeurisme” (Petit, 1987), infere que Luísa, por passar a sair diariamente à mesma hora, tem um amante. Luísa põe em causa, assim, os valores morais, a ordem matrimonial, favorece a desordem moral.
O Paula contrapõe à desordem moral das damas de alta sociedade, a ordem e dignidade do povo.
Ironia
Ironia
A ironia advém da metáfora popular “a do Engenheiro tinha agora o seu S. Miguel”, sobretudo se tivermos em atenção os problemas que o "seu" S. Miguel, ao contrário de S. Miguel, lhe vai trazer.
Romance de tese
Romance de tese
A crónica social é uma componente essencial do romance de tese, na medida em que o meio é explicação determinante para o comportamento das personagens. O prosaísmo mesquinho da rua de Luísa ajuda a compreender a sua fuga para "paraísos".