Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de matemática, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta de um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o aspecto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as mãos transparentes o robe-de-chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinelas de cassa.
Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto, estendendo o seu carão viúvo, os braços cruzados sobre o xale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a cara oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua (...). Detestava os reis e os padres. O estado das coisas públicas enfurecia-o.
Contexto Interno
Contexto Interno
A rua descrita é a de S. Francisco onde moram Jorge e Luísa, uma típica rua da pequena/média burguesia lisboeta.
Contexto Referencial
Contexto Referencial
Realejo: orgão mecânico portátil que funciona por meio de uma manivela a accionar simultaneamente um cilindro munido de pontas de cobre que abrem as válvulas dos tubos e os respectivos foles.
Perspectivas
Tédio
Tédio
Todos os que se aproximaram das janelas ou saem à rua parece não terem que fazer. O tédio domina nas "faces enfastiadas". Os termos escolhidos pelo narrador reportam-se ao campo semântico da inactividade: “encostar”, “debruçar”, “braços cruzados”.
Indícios/símbolos
Indícios/símbolos
A rua vazia, de repente, por se ouvir a melodia do realejo, enche-se de gente inactiva e curiosa. Esta atitude indicia futuros comportamentos dos habitantes da rua face a qualquer movimentação fora do comum.
Decadência
Decadência
A Gertrudes acumula as funções de criada e concubina, o que sugere a decadência de costumes. Os habitantes da rua apresentam um aspecto desarranjado, adoentado, animalizado até e alguns têm uma higiene descuidada. A falta de higiene foi denunciada por Ramalho entre outros escritores realistas e naturalistas. A vizinhança de Luísa era popular e miserável (Saraiva e Lopes, 1992).
Romance de Tese
Romance de Tese
Caracterização do espaço, particularmente da rua onde vive Luísa, a qual é considerada assombrosa por Costa Pimpão (1952).