Quando a campainha retiniu fortemente às dez horas, Luísa havia momentos, sentara-se à beira do divã. Mal teve força de dizer a Basílio:
- Há-de ser Juliana, tinha ido fora...
Basílio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi acender um charuto. Para quebrar o silêncio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao acaso, e erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a ária do terceiro acto do Fausto:
Al pallido chiarore
Dei astri d’oro...
Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado: - era uma noite, havia anos, em S. Carlos, num camarote com Jorge; uma luz eléctrica dava ao jardim, no palco, um tom lívido de luar legendário; e numa altitude extática e suspirante o tenor invoca as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe: Que lindo! E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento. Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge passando-lhe a mão pela cinta, repetia:
Al pallido chiarore
Dei astri d’oro...
E apertava-a contra si... (167-168)
Contexto interno
Contexto interno
Basílio não aparece em todo o dia, deixando Luísa ansiosa. Leopoldina vem jantar com Luísa, recordam a sua juventude, os seus amores e bebem champanhe. Leopoldina despede-se para ir ter com o amante e Luísa pensa no primo. Quando Basílio se apresenta ao serão simulando uma despedida, Luísa cai-lhe nos braços e entrega-se-lhe.
Contexto Referencial
Contexto Referencial
A ópera de Charles François Gounod (1818-1893), Fausto, conta a história de Fausto que vende a alma a Mefistófeles para ficar jovem. Apaixona-se por Margarida, sedú-la e depois deixa-a. Ela dá à luz um filho, que assassina, é presa e, arrependida, é levada pelos anjos para o céu. Este extracto ocorre antes de Fausto seduzir Margarida.
Perspectivas
Atmosfera romântica
Atmosfera romântica
O Fausto de Gounod era uma ópera romântica muito em voga na época. Basílio ao tocar e cantarolar um extracto, que aborda a sedução de Margarida, pretende prolongar a atmosfera romântica em que Luísa e ele estavam envolvidos.
Indícios/símbolos
Indícios/símbolos
Nesta passagem dois símbolos incidem sobre o processo da sedução e da posse sexual: o charuto e a ária do Fausto.
O charuto que Basílio acende depois de ter possuído Luísa surge como símbolo da posse sexual e de prolongamento dessa posse (Lima, 1996).
A ária da ópera de Gounod tem uma dupla simbologia ligada à sedução. Em Jorge, ela indicia o desejo pela amada, tal como acontece na ópera; enquanto que em Basílio surge depois da primeira relação sexual, como indiciando o futuro abandono que, como na ópera, acontecerá na vida real.
Decadência
Decadência
Luísa deixa-se levar por Eros, perde a consciência da realidade e entrega-se a Basílio. Quando se liberta do poder de Eros, reentra na realidade e apercebe-se da sua mácula (Lima, 1996).
Aparência/Realidade
Aparência/Realidade
O espaço fechado da sala, contraposto ao espaço de "fora", de Juliana e do mundo, fôra um espaço de infracção (realidade). É a ária cantada com voz propositadamente alta por Basílio que repõe o reino da aparência perante Juliana.
Ordem/desordem
Ordem/desordem
Luísa ignora a ordem social, entrega-se à desordem dos sentidos e consequentemente à desordem moral.
Intertextualidade
Intertextualidade
O narrador tira partido intertextual da ária do Fausto de Gounod para caracterizar a atitude do marido e do amante para com Luísa.
Ironia
Ironia
O narrador provoca uma dupla situação irónica. Por um lado, ao fazer Jorge e Basílio cantarem a mesma ária do Fausto mas em situações contrastantes: o marido quando deseja a esposa; Basílio depois de ter possuído pela primeira vez a amante. Por outro lado, fazendo Luísa sair do sonho e reentrar na realidade ouvindo exactamente aquela ária que ela já viveu num outro momento igualmente romântico, mas legítimo.
Romance de tese
Romance de tese
O narrador mostra Luísa presa dos sentidos embora já despertando, ainda "estremunhada", para a comparação entre as duas formas distintas de rodear a atmosfera amorosa do amante e do marido, tendendo a revalorizar o segundo.