Nessa semana, uma manhã, Jorge, que se não recordava que era dia de gala, encontrou a Secretaria fechada, e voltou para casa ao meio-dia. Joana à porta conversava com a velha que comprava os ossos; a cancela em cima estava aberta; e Jorge, chegando despercebido ao quarto, surpreendeu Juliana comodamente deitada na chaise-longue, lendo tranquilamente o jornal.
Ergueu-se, muito vermelha, mal o viu balbuciou:
- Peço desculpa, tinha-me dado uma palpitação tão forte...
- Que se pôs a ler o jornal, hein?... - disse Jorge, apertando instintivamente o castão da bengala. - Onde está a senhora?
- Deve estar prá sala de jantar - disse Juliana que se pôs logo a varrer, muito apressada.
Jorge não encontrou Luísa na sala de jantar: foi dar com ela no quarto dos engomados, despenteada, em roupão da manhã, passando roupa, muito aplicada e muito desconsolada.
- Tu estás a engomar? - exclamou.
Luísa corou um pouco, pousou o ferro. - A Juliana estava adoentada, juntara-se uma carga de roupa...
-Dize-me cá, quem é aqui a criada e quem é aqui a senhora? (345).
Contexto interno
Contexto interno
Luísa descobriu que dando presentes a Juliana esta se mostrava satisfeita. Contudo, Juliana exagerava nos pedidos: mudou de quarto, pediu uma cómoda nova, esteiras para o chão. Ficava na cama até tarde e Luísa começou a fazer alguns trabalhos domésticos para ninguém se aperceber do que se passava.
Contexto referencial
Contexto referencial
"chaise-longue" - cadeira em que uma pessoa se pode estender.
Perspectivas
Decadência
Decadência
Luísa vai decaindo, perde o seu estatuto de patroa, devido à chantagem, fazendo serviços que competem à criada e não a uma senhora da sua classe social.
Aparência/realidade
Aparência/realidade
Jorge, pela primeira vez, depara com a actual realidade do seu lar. Até então só o vira em aparência e não na essência.
Ordem/desordem
Ordem/desordem
Jorge depara com o seu lar estruturado às avessas: a criada a ler o jornal, muito refastelada e a esposa a engomar, toda desarranjada e desconsolada.
Ironia
Ironia
Neste extracto a ironia é suscitada pela atitude de Jorge ao deparar com a inversão dos papeis entre criada e patroa: "Que se pôs a ler o jornal, hein?"; "Dize-me cá, quem é aqui a criada e quem é aqui a senhora?".